quarta-feira, 30 de março de 2016



ANTÓNIO



A devoção de Esmeralda aos efeitos milagreiros de inspiração divina, encarnados no medievo Fernando, nascido em Lisboa, que atingiu notoriedade como António o Pregador, o frade lusitano possuidor de invulgar e notável cultura literária, cuja capacidade taumatúrgica o tornou merecedor da canonização, é assim perpetuada:
Acabado de chegar à quinta após infindáveis horas de viagem de automóvel que se iniciaram em Lisboa, sorveu dois copos da água fresca do poço e escapuliu-se para a cavalariça para mais uma cavalgada no “Bonito”. Vislumbrando passeio no campo o amigo equídeo relinchou de contentamento. Com a agilidade que o caracterizava, o pequeno ginete, apoiando-se nas tábuas da cocheira, ultimou os arreios e, unidos em flecha, rompem em busca de diversão.
O sino da Igreja de Vilar de Torpim badalava as 7 horas da tarde quando o som de uma buzina nas imediações fez empinar o Bonito, projetando o jovem Manuel Maria para um dos lados da montada. O galopar desenfreado, impediu que o garoto se erguesse e o seu crânio foi arrastado ao longo do caminho.
Valeu a célere intervenção do Pastor que imobilizou o corcel e com o menino inanimado e envolto em sangue, solicitou-se a presença dos meios de socorro. Era o dia 31 de Agosto do ano de 1949 e naquela região da Beira Interior Norte escasseavam os recursos médico-hospitalares… pelo que um fugaz desvio para a Urgência da Guarda culminou em internamento na Capital.
O coma perdurou e a Mãe, perante tal infortúnio, implorou a intervenção do seu companheiro espiritual. Pactuou assim com o Santo António que se o filho se salvasse construiria uma capela em sua honra no local do acidente, incorporando réplica da sua imagem, e despojar-se-ia das jóias.
O Menino vingou! O compromisso foi honrado!
A enfermidade atingiu a orada de Santo António da Quinta do Cardo, e a singularidade de outrora desvaneceu-se, perdurando apenas intacta uma placa relatando o acontecimento.
Quanto ao “António”, optou pela eternização. Acompanha agora as nossas vidas…

A Galega de Castro

Hotei





De fundição apurada em latão luzidio, não passava duma imagem estranha, obesa, plácida que eu situava entre um anão e um homúnculo. E, no entanto, por trás de tudo, despertava-me pensares diferentes de coisa misteriosa,  longínqua.
E estranhava como tinha alcançado lugar no pódio da estante de pau preto do meu avô?
Descobri, por fim, que, neste monge desnudado, a sua enorme barriga, a 'hara', diz da sua grandiosidade de espírito e virtude e que este Hotei funciona, para quem queira, como amuleto e, acrescentarei, como percursor  do caminho ideal, do caminho do meio', que procuro qual Siddhartha.

Prímula Matinal

sexta-feira, 11 de março de 2016

Memórias



Objectos muito antigos, bastidor, bilros, navette e furadores em marfim e agulheiro em madeira.
Guardo com muita emoção pois transportam memórias das minhas raízes familiares.
Ainda hoje cultivo com muito gosto a arte da costura, bordados, crochet e tricot.
A máquina de costura é mais recente, meio século. Emociono-me por ter ainda capacidade de a utilizar regularmente.
8x10

Laudo


Daqui, dali, dalém,
Verbos, sondas, passos, beijos,
Sussurros, não vá acordar quem já não acorda
Silêncio
E numa caixa redonda fremente explode o sentimento
Que a aceitação estanca
Vamos
Siga
Venha outro à experiência
Da vida 

Prímula Matinal

Avó


Em dias prazenteiros era observá-la, às tardes, antes da merenda, a deambular delicadamente pelo “Jardim do Cândido”, aquele brasileiro de torna viagem, pleno de intuição para os câmbios e papéis de crédito mas que tornou defunta a antiga muralha com o intuito de presentear a terra natal com um belíssimo e aprazível recinto arborizado, sobranceiro às serenas e flávias águas do Rio Tâmega.
Escutava a banda filarmónica que abarrotava o rendilhado coreto. E, tudo semelhante a uma praxe, sentava-se e dedilhava sobre a coxa direita, as marchas e as polcas, como se do seu piano se tratasse.
Percorria o Bairro da Madalena, acenando para a progenitora que àquela hora mirava os transeuntes da janela da sala, galgava a eito o magnífico legado da romanização do obreiro Optimus Princeps Imperador Trajano - tropeçando de quando em vez nas reminiscências do antigo balneário romano -, cruzava a azáfama do Arrabalde, e culminava a sua jornada na Ouriversaria da Madrinha, bem no âmago da Rua Direita.
Intervalando com a clientela, que nem duas tontas à galhofa, iam lendo os versos da formosa e delicada Bella, salpicados de humor e rima, até que o aroma a chá e torradas invadia o aposento, indicando pausa para lanche.
Pautou sempre o quotidiano com brandura e distinção, pilares espelhados nas sedosas feições, evocando quiçá Léa e Jacó…


A Galega de Castro





AS VIRTUDES DO MÉDIO


O médio não ofusca a inteligência, não abusa da estupidez. Deixa  brilhar os elegantes e serve de inspiração aos desleixados. O médio tem bens corriqueiros que não instigam cobiça. Não faz mossa aos talentos. Politicamente está resolvido. O médio exprime-se com parcimónia diante dos letrados, mas toca a  eloquência junto dos néscios. O médio não precisa de mentir. Paga as contas nos prazos. Tem amigos por medida. O médio não tem aspirações olímpicas: leva as sapatilhas ao clube e, de troféus, traz a alma quente do duche. O médio não precisa de ler o Expresso todo, pode ficar pelos títulos e separatas. O médio viaja só até à Europa pois, se viaja mais longe, perde o estatuto de médio.
 Prímula Matinal

quinta-feira, 3 de março de 2016

O MEU OBJECTO DE ESTIMAÇÃO



Na Lunda Norte, em  inícios dos anos 50 do século passado, o trânsito de pessoas e bens entre Angola e o então Congo Belga, distante apenas  16 kms., fazia-se com toda a normalidade. O próprio correio recebíamo-lo através desta via e nunca por Luanda.
E foi exactamente a um indivÍduo que se dedicada a levar e a trazer o que mais interessava a um ou a outro lado, que eu adquiri um relógio,  no inicio de 1953, um relógio suíço ORIS. Foi, na verdade, o primeiro relógio que possuí, e adquirido com  o dinheiro  ganho por mim. Usei-o algum tempo até que, enamorado do relógio que meu pai usava, mais brilhante, com outras funções, tive artes de o levar a fazer a troca, apesar da sua renitência (pouco durou este relógio que me entusiasmou, pois só tinha a aparência). Meu pai passou a usá-lo diariamente e tinha-o no pulso quando, um ano depois, foi vítima de um fatal acidente. Desde esse dia e  sempre em perfeito estado de funcionamento, andou o relógio no pulso de  minha mãe,  durante toda a sua viuvez, até ao seu falecimento em 1990.
Voltou à minha mão, avariado e sem conserto, segundo me dizem. Ainda não desisti de o ver um dia a funcionar de novo, se encontrar um artista habilidoso e entusiasta de coisas antigas. Conservá-lo-ei, mesmo que tal se venha a verificar impossível, não pelo seu valor intrínseco mas pelo que ele  representa como elo inestimável  com os meus progenitores. Também pelas lembranças que me traz dos locais e dos tempos que vivi nos meus verdes 17 anos.

Porto, 02 de Março de 2016


ALFAVILA



terça-feira, 1 de março de 2016

O MATA-BORRÃO



No tempo em que os aparos eram outros e sujavam mais do que deviam, existiam apetrechos para limpar as nódoas que caíam no papel onde escrevíamos: os borrões (que era assim que se chamavam as nódoas que alastravam nos escritos) eram logo mortos à nascença para que o texto, assim, enxuto e limpo, pudesse ser lido sem percalços.
Desse tempo, guardo ainda, intacto, um mata-borrão muito limpinho e o tinteiro da tinta que escorria pelo aparo donde saiam letras desenhadas....

Porto, 01/03/2016


Manelito