segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

Os 'filhos do meio'




Aos quatro anos, tornei-me filha do meio. Breve construí uma teoria que contraria a falaciosa tendência para catalogar 'os do meio' em síndromes.
Sem dúvida o 'primogénito' carrega desde a gestação, sonhos, inexperiência, ansiedade dos progenitores. É alvo de conversas repetidas sobre os seus avanços cognitivos e motores registados em vídeos e fotos que os amigos dos pais  engolem como xarope aos serões. Leva as vacinas todas. Uns anos mais, começam a delinear o seu futuro. Aqui, o bebé já usa calção. É venerado e, em igual dose, asfixiado pelos pais, avós, tias disponíveis.
'O caçula' , ah sim, é o que vai ser bebé toda a vida,  mesmo  quando, tardiamente,  se faz à vida. Cria dependência pela mãe e foge aos castigos do pai com destreza. Se tem más notas é da falta de vitaminas e por aí adiante.
Por fim, na chave destas premissas, 'o do meio'  é o que escapa  a tudo isto. Cresce no ponto de equilíbrio dos afectos, das expectativas; é amado com moderação. Aprende cedo a lidar com três frentes e, depois da comunhão solene, já pode calçar os sapatinhos duma pré- independência. 
Prímula Matinal


A PEDRA




Lua, de seu nome



Dissimuladamente foi-se incorporando no clã, merecendo atualmente as honras de membro honorário.
Iniciava-se o equinócio primaveril quando nos cruzámos nas cercanias do berço da Deu-la-Deu, lá para as bandas de S. Salvador de Cambezes, povoado ancestral com odor a sangue celta.
Alegre e saltitante, a jovem pigarça disfrutava do campo verdejante, que já ameaçava florir, folgando com familiares. Sedosos cabelos ruivos adornavam-lhe as feições, matriz simbólica do padrão de beleza medieval anglo-saxão.
Subitamente, olhámo-nos e logo experimentámos a laçada. Acabava de ocorrer o feitiço!
Pautando o seu dia-a-dia pela discrição crivada com laivos de acanhamento a delicada senhorinha, portadora de olhos cor de avelã, tal como uma atenciosa confidente, trajando fidelidade, rematou com xeque-mate a estrada das nossas vidas.
Em rotação sincronizada, esta satélite do lar é a Lua de seu nome.
A Galega de Castro

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

A CAIXA DE SAPATOS

Talvez tivesse uns 10 anos (por aí) e andava então, de caixa de sapatos na mão, furada de um dos lados, onde colocava o fundo de uma garrafa de vidro branco, (para servir de lente) e no meio, uma vela que acendia com muito cuidado. Entre a vela e a lente colocava, à mão, fotogramas que um amigo meu cujo pai era projeccionista no cinema/teatro Sá de Miranda em Viana do Castelo, lhe arranjava e ele me oferecia; com um lençol branco que a minha mãe me emprestava, ali “projectava”  as imagens que iam saindo daquela improvisada máquina. Quando já tinha uma certa experiência, comecei a convidar a família para ver aquelas “sombras” que para mim (relembro) eram magníficas: e lá arrastava eu a caixa e lá mergulhava no sonho que crescia....
Um dia o meu pai (não sei onde a foi comprar,  talvez no Porto, creio) ofereceu-me, pelos meus anos, uma verdadeira máquina de projectar que tinha uma manivela que se accionava à mão,  duas bobines e um pequeno filme que vi vezes sem conta: no mesmo lençol enrugado e branco onde tantas vezes vi as minhas “sombras” da caixa de sapatos, via, agora, nítidas e grandes, figuras humanas que parava quando queria e passaram a fazer-me companhia: tudo me parecia irreal, um verdadeiro sonho. E vezes sem conta passei esse filme que vinha com a máquina, olhando para a lente donde saía a poallha de luz.
De tudo que me encantou, só ficaram estas duas bobines, (que originariamente eram até mais pequenas) uma que continha o filme, a outra que o recebia, depois de passar por uns carretos.
E ainda hoje penso, com saudade, no que teria passado pela cabeça de meu pai quando resolveu oferecer-me aquela máquina, e que  alegria teria vivido quando a comprou, a transportou do Porto até à Meadela, onde vivia, e ma ofereceu!? Ainda hoje penso, acreditem!!! Que alegria foi a dele!?
Ainda hoje também, quando vou ao cinema, gosto de ficar bem junto da cabine, donde sai aquela luz mágica que transporta as imagens que me envolvem e fazem recordar !!!!
Desculpem parar, por aqui, o filme....

Porto, 24/02/2016


MANELITO



segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

Maçãs silvestres


Em Setembro, antes de sair o portão da quinta para as digressões matinais, colhia da árvore duas ou três maçãs em vermelho lacado e aroma vibrante. Trincava a pele resistente e o sumo salpicava-me a cara e inundava-me a boca que se comprimia pela acidez. À segunda e terceira dentada tornava-se num néctar de puro prazer.
E enquanto gozava desta inebriante ambrósia, ia apurando a técnica de contornar os delicados labirintos oxidados cavados pela habitante privilegiada deste eco-mundo.
De tal maneira as venero que não me admirei quando ouvi dizer que terão determinado os primórdios da nossa vida na terra. E, se não o fizeram, vale o mesmo porque o que reza é o que faz fé; assentes em prateleira dedicada, as maçãs silvestres perfumarão para sempre o mais recôndito da minha despensa.


Prímula Matinal

LENÇO


Abriu a gaveta e o suave aroma do lenço invadiu-lhe a alma, aturdindo-a. Sorriram. Felicidade recíproca transbordou daqueles corações...havia laços…
- Gostaria de ter um abraço teu, mas sinto-te tão frágil… - disse, em trémulo tom de voz, a Maria José.
- Os anos passam, minha querida! Já protegi cabelos e adornei donzelas. Mas a fraqueza apoderou-se de mim, estou mais débil mas tento continuar fiel à família… espero que por longos e duradoiros anos. Ajudas-me ? – retorquiu o lenço.
- Claro, eternamente cúmplices! – balbuciou a Maria José.
- Recordo-te que caminhei muitas léguas, cruzei o rio, conheci outras vidas, convivi com momentos de júbilo e ventura e até dancei!  Agora, a fragilidade dos filamentos impedem-me de caminhar…
- Escuta…vislumbra-se folia. Impeço-te de declinares o convite! Prometem infinita diversão plena de inolvidáveis melodias… !
Complacente, anuiu presença no baile. Inebriou-se com a perspetiva de voltarem a rodopiar!
Já noite alta, alguns pares tombaram despojados no encerado parquet sobre os sedosos filamentos róseos que adornavam o chão, que nem delicadas pétalas. Era o reflexo da fadiga emanado do adorno da dama…
Regressaram entrelaçadas, exaustas…
- Sinto frio. Podes acariciar-me? Mas, por favor, toma cautela… observa quão pálida estou. O rosa desbotado no amarelo quase impercetível…   Ah, mas a macieza, essa, tal como eu, obstinadamente persiste inalterável! – afirmou trémulo o lenço
- Senhora minha, aceitas visitar-me de quando em vez ? – pergunta
- Obviamente que sim! – rejubilou a Maria José
- Abraça-me então, com carinho, por uns momentos mas volta a guardar-me. Necessito de repousar  – finalizou o lenço.


A Galega de Castro

terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

FOZ DO DOURO 15.02.2016



Se eu fosse pintor, passava a minha vida a pintar o pôr do Sol à beira-mar. Fazia cem telas, todas variadas, com tintas novas e imprevistas. É um espectáculo extraordinário. 
Raul Brandão

Despedida antecipada


Despedidas de partidas no cais de viagem
de solteiros, de namoros, de filhos e pais, de amigos
Despedidas de noitadas, de vidas passadas, de livros não lidos, 
Despedidas de festas, velórios, convívios, casórios
Despedida singular dum cão que não se despede com a pata, mas sim com a mão 
Despedidas sentidas com acenos e choros, despedidas silenciadas
Despedidas nuas, sem sentimento ou fulgor, desbotadas, mirradas, sem aura de amor
Despedidas falhadas sem palco onde pôr as sombras pesadas de tanta dor
Despedida só
Despedida flor

Prímula Matinal

O meu triciclo




Meu querido triciclo da minha infância! Como te recordo com saudade e ternura!

Foste o companheiro amigo dos meus folguedos na  minha meninice.Nas tardes
amenas e primaveris e nos dias quentes de estio sentava-me em cima de ti e,leda,
partia com os meus amigos e amigas em louca e veloz correria pelas ruas graníticas da minha linda e saudosa aldeia onde nasci!
Tão feliz que eu fui contigo, meu triciclo de madeira pintado de castanho,com o meu
nome inscrito em verde jade na parte traseira do teu assento!
Agora,que, já adulta,perdi o teu rumo... o que daria e faria para te reaver,te tocar e sentar-me em ti como nos bons e doces tempos da minha infância!...
René Blanc

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

Trabalhos em gestação




Vil hesitação



Entrei no autocarro, na Praça, depois duma tarde vadia na Baixa. Escolhi um lugar na coxia, onde o sol me espreitava, coado. Acomodei os sacos não sem incomodar o vizinho ao qual dirigi breves palavras de circunstância. Cerrei os olhos e cochilei embalada pelo primeiro andamento.
Ao chegar à Galiza já muita gente entrara, e uns tantos de braço alçado nos varões, gingando os corpos em elipse ao sabor da condução. De pé, ao meu lado, vejo um homem encorrilhado de pele, funguento, rafado no porte e nas vestes, olhar ausente.
Nem pensar! Estou muito cansada para dar o lugar. Finjo que durmo mas vou lançando o meu olhar pelo ângulo óptico que, sem mover a cabeça, me permita vigiar aquele que está a entrar na minha esfera de sossego. Permanece imóvel, ausente. Semicerro as pálpebras e quase pronuncio zzzz, zzzzz, fazendo tempo para alguém, talvez, lhe dar o lugar.
Nada. Reabro os olhos e abarco aquele corpo em quebranto e os meus ouvidos trazem-me em ultra som o ranger dos seus ossos. Não aguento, seguro os sacos, levanto-me dum lance e atiro: 
- O senhor não quer sentar-se?
- Não minha gentil menina, vou já sair na próxima.
Gentil menina? Gentil  menina? dezenas de vezes voltejando. Zangada com o meu cérebro saí do bus, sem ver ninguém desci a rua e só sosseguei quando, por fim, o denunciei  ao mar.

Prímula Matinal

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

SAPATINHOS



Montras com sapatos... que loucura! Não despego os olhos de tanta cor e feitio! Então o meu gosto vai para aqueles clássicos de verniz preto e tacão tipo agulha de três ou quatro centímetros.
Tive os meus primeiros sapatos de tacão aos 16 anos! Que alegria! Senti-me uma senhorinha! Tão bonitos e  delicados que eram!
Agora, já uma sénior,  uso sapatos mais cómodos, mais práticos... como convém à idade.

René Blanc

Três objectos, três gerações.



Três objectos muito significativos e de grande estimação.

Representam três gerações.

Os óculos eram do meu Avô, ano de 1868.

A caixa de pó de arroz de fabrico Francês pertenceu à minha mãe, ano de 1906.
Os brinquedos são de porcelana, fábrica do Candal, jarro, bacia e duas saboneteiras, pertenciam a um pequeno lavatório de madeira e já vinham de família, ano de 1936.

8X10 


MATEUS ROSÉ

Os grandes bebiam o vinho. 
Eu ficava com os brindes.

B de Vitória
 
 

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2016

O ESPELHO





Daqui saíram muitas imagens de alguém que quis olhar este espelho: e de tanto o ter olhado, permitiu que o espelho se tivesse habituado a ver quem o olhava: e ainda hoje, (como eu), recorda quem nele se mirava. Os espelhos, talvez por o serem, não mentem a quem os olha e vê: simplesmente, refletem imagens. 
Há quem diga que, por vezes, até as lágrimas de quem chorou um dia, e no preciso momento em que para ele olhava, são ainda hoje reflectidas para quem, saudoso, o segura e olha. 

2016-02-03
Manelito 

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

Noite de Reis









Como tenho dito, as memórias que tenho não são de todo muito agradáveis; pelo menos as que me lembram mais.
Há uma que resolvi contar por saber que tinha um pouco de” Alegria breve”, como diria Vergílio Ferreira.
Era o tempo das festas: Natal, Ano Novo, Reis.
A casa dos avós enchia-se de poesia , de gente atarefada com os preparativos, de fritos e de muito amor.
O avô, sabedor e conhecedor da vida e das coisas e com uma sensibilidade sempre muito bonita, a ponto de chorar sem qualquer problema desde que o assunto o fizesse emocionar, levava-me a passear antes de me despedir dele pois eu não passava o Natal lá em casa.
Lembro-me bem como chorávamos os dois !
Mas, para que tudo se amenizasse, dizia-me que em Espanha, sítio onde muitas vezes fazia as suas férias com a avó, o mais importante era a festa dos Reis, altura em que os meninos recebiam as prendas.
Além disso, já era Janeiro e como tal, mandava a tradição que se cantassem as Janeiras.
Tudo isto era feito com tanto gosto e tanta sabedoria que até parecia que aquelas lágrimas quase  a cair dos nossos olhos se transformavam em estrelas a brilhar no Céu que nos acompanhava e que olhando para ele, quase por magia, elas ficavam presas nos nossos olhos.

Alegria Breve

Já existo!









Dei conta que existia, um dia à tarde, à saída do portão de minha casa, o 119. Creio que tinha uns sete ou oito anos e, voltada para os plátanos do jardim em frente, que por acaso já me conheciam melhor a mim do que eu a eles, enumerei mentalmente, aquilo que seriam os meus dogmas:

  1. Não se pede nada aos pais, porque podem não ter meios para dar;
  2. Não se reclama a prenda de Natal e deve-se mostrar uma cara feliz;
  3. Os segredos não existem;
  4. A ninguém interessa se já sabemos andar de bicicleta;
  5. 1/4 de manteiga tem de dar para uma semana, para os três irmãos;
  6. O frango assado já  chega à mesa virtualmente partilhado; 
  7. A roupa de vestir vem das primas, excepto as sandálias 'franciscanas' que se ía buscar à fábrica do Tio Americo e, a seguir, vai para os pobres.
  8. Pão com fiambre é só nas festas, 
  9. Ida ao Sr. de Matosinhos - não se pede nada, mas sabe-se que vamos andar uma  vez no carrossel.
  10. Uma menina não conta anedotas, sobretudo do Bocage (a última vez que contei no sapateiro tinha cinco anos e meteram- me na escola). 
E assim construi as primeiras 'tábuas de lei 'da minha preciosa infância e me preparei, com uma perna às costas, para o mundo que veio a seguir.

Prímula Matinal