LUGAR DE MEMÓRIAS destina-se a registar e partilhar memórias, lembranças, recordações, sob a forma de textos e de imagens relevantes para os seus autores. É um arquivo que decorre do trabalho desenvolvido na oficina de Escrita e Memórias, da Universidade Douro Cultura da Foz, no ano lectivo de 2015/16. Este blog não exige a adopção do novo acordo ortográfico.
domingo, 31 de janeiro de 2016
TIC-TAC
Pertenceu a um genuíno Mirandês, que despontou para a esta
vida na segunda metade do século XIX na Freguesia de Santa Maria Maior, bem no
coração de Miranda do Douro, este medidor portátil do tempo, tal qual “Ovo de Nuremberg”, que jurou fidelidade a seu
Amo.
Por detrás das janelas da Rua da Alfandega, entre as rendadas
cortinas, e após o almoço, as donzelas da cidade espreitavam o elegante e
sedutor Delegado da Fazenda Pública que, após saboroso repasto, diariamente e a
passo apressado, atalhava caminho até ao Largo do Cruzeiro. No número 38
habitava uma, de perfil mais atrevido, que lá ia dizendo em perfeito mirandês :
“Buonas tardes Senhor Moço! Mie bó te Cumbida
à buber una copa de bino fino e manducar bolha doce, deimingo pela tardinha…”.
Ruborizado acenava sinalizando apenas agradecimento. Na verdade, aquela que lhe
fazia palpitar o coração distava um dia de galope, lá para os lados de
Mirandela.
Figura de médio porte, sempre bem ataviado, de casaca, colete
e calças, com albinas camisas e sedosas gravatas, lustrosas botas pontiagudas e
a indispensável cartola sobre o ondulado cabelo castanho, rosto ovalado onde
sobressaiam uns olhos esverdeados e um sorriso contagiante, nunca enveredou
pela moda das barbas, mas um farto bigode fazia jus àquilo porque era conhecido
: um dos solteiros de ouro das Terras de Miranda.
De ouro era também o “Longines” de fabrico suíço, com as suas iniciais gravadas – Rodolpho Adriano de Faria - peça crucial
na sua indumentária, que nunca abandonou, mesmo nos gélidos meses do rigoroso
inverno em que trocava a casaca pela capa de burel.
Nunca avariou… Ora escutem o tic-tac!
A Gallega de Castro
Caixa do pó de arroz
Estavámos sentados no escano. Já
tínhamos jantado. Sonolenta ia ouvindo as conversas. Lá fora continuava a
nevar. A noite era dum esquecimento de escuridão. Mas cá dentro, a fogueira era
quente, o colo macio e cheirava bem. Cheirava a pó de arroz o colo de minha
mãe. O gato encostado a mim dormia.
A aldeia estava isolada pela neve. Ninguém se atrevia a meter-se por aqueles caminhos perigosos.
- A menina é tão pequenina, quase que o gato é do tamanho dela, dizia a empregada olhando para mim com um sorriso amigo.
Minha mãe olhava-me com ternura e eu aconchegava-me mais a ela.
E este suavíssimo bem estar acompanhava os meus primeiros anos de menina feliz.
O inverno passa, a primavera chega.
-O Jesus levou a mãezinha para o Céu, diz a minha irmã chorando.
Não acreditei. Não podia ser. O Jesus tinha a mãe dele, para quê levar a minha?
Esperei. Procurei-a por todo lado. Foram dar comigo com o nariz enfiado dentro da caixa do pó de arroz. Mas aquela caixa ingrata não soubera reter o cheiro de quem sempre lhe fora fiel.
Abafei o choro e fugi para o quarto fundeiro onde tinha os brinquedos e onde o gato sempre ia ter comigo. Mas daquela vez não foi.
Então, angustiada, confusa, sem compreender nada, senti-me duplamente traída, pelo gato e pela caixa do pó de arroz.
26/2/2016
A aldeia estava isolada pela neve. Ninguém se atrevia a meter-se por aqueles caminhos perigosos.
- A menina é tão pequenina, quase que o gato é do tamanho dela, dizia a empregada olhando para mim com um sorriso amigo.
Minha mãe olhava-me com ternura e eu aconchegava-me mais a ela.
E este suavíssimo bem estar acompanhava os meus primeiros anos de menina feliz.
O inverno passa, a primavera chega.
-O Jesus levou a mãezinha para o Céu, diz a minha irmã chorando.
Não acreditei. Não podia ser. O Jesus tinha a mãe dele, para quê levar a minha?
Esperei. Procurei-a por todo lado. Foram dar comigo com o nariz enfiado dentro da caixa do pó de arroz. Mas aquela caixa ingrata não soubera reter o cheiro de quem sempre lhe fora fiel.
Abafei o choro e fugi para o quarto fundeiro onde tinha os brinquedos e onde o gato sempre ia ter comigo. Mas daquela vez não foi.
Então, angustiada, confusa, sem compreender nada, senti-me duplamente traída, pelo gato e pela caixa do pó de arroz.
26/2/2016
Maria
quarta-feira, 27 de janeiro de 2016
FOLHA DE PRONTUÁRIO
A vida do Avô Camilo
(28.03.1874-14.08.1946) dava um filme - como a vida de qualquer pessoa, desde
que bem filmada. Professor, etnólogo, bibliotecário, escritor. Um projeto
inacabado foi um prontuário da língua portuguesa. Guardo milhares de folhas
manuscritas, letra a letra. Não servem hoje para nada mas são bonitas e revelam
a perdida mistura de tempo-determinação ao longo do tempo-paciência na
determinação ao longo do tempo.
B de Vitória
HIGIENE
Para evitar a cena diária matinal,
de resmungar com o sujeito que via ao espelho no quarto de banho, alterei a
minha higiene diária com uma oferta familiar.
Como me levantava cedo por
questões profissionais, antes de me submeter ao banho, colocava à mão três
peças essenciais para me barbear. A saber, pincel,espuma da barba e o lápis hemostático.
Este último apetrecho era usado
normalmente ao mesmo tempo dos anteriores, depois de barbear. O que significa
que os cortes eram usuais, apesar de sair do banho com a pele dilatada pelo
calor da água.
Não digo o que dizia diariamente após
esta cena matinal: por ter de levantar cedo, a dormir ou acordado, tinha de me
cortar.
Alguém, talvez por estar já farto
de ouvir sempre as mesmas coisas, teve um ideia fenomenal.
Uma manhã ao entrar no quarto de banho,
reparei num embrulho rectangular mas, como estava mais preocupado com o meu
trabalho matinal, fiquei por ali.
Ao sair ouço:
-Então, fizeste melhor a barba,
hoje?
Ao fazer a pergunta olhou para dentro
do quarto de banho.
-Porquê, nota-se? – Respondi.
Entrou e mostrou-o, com o seguinte
comentário: “ando eu a gastar dinheiro não sei para quê…!!”
Era uma máquina de barbear
Philishave 755.
Depois de deitar fora ou dar, já
não me lembro, os ditos aparelhos auxiliares, agradeci com um grande beijo,
para começar o dia.
E os outros? – Evidentemente que
não podia, depois de fazer a barba com a máquina, beijá-la todos os dias.
Éramos dois a viver em casa.
AnneChrist
Arte Abstracta ou A Lição do Luís
Numa tarde invernosa, cheia de jogos, cabanas,
escondidas, Legos e lanches repetidos, baixei o ritmo e entreguei ao meu
neto Luis as tintas de guache que o ocupariam para me deixar acabar de ler a
Mrs. Dalloway.
Estava eu a tentar ler pela enésima vez, quando me interrompe de novo, mas desta, de forma irrevogável, garboso:
- Acabei o desenho. Vais adorar!
Estava eu a tentar ler pela enésima vez, quando me interrompe de novo, mas desta, de forma irrevogável, garboso:
- Acabei o desenho. Vais adorar!
-
Mostra lá a obra, rapazola, disse-lhe eu, com a última cena do Septimus a
toldar-me ainda os neurónios.
Num pedaço de cartão reciclado, este miúdo, de escassos cinco anos, apresentou a sua triunfal ' Chegada à Ilha dos Samurais'. Embasbacada, sem perceber o que era o quê, não consegui formular as perguntas adequadas à obra, não fora ferir o brio de tão jovem 'artista'. Perante tanta hesitação, o menino abre o jogo ' estás a ver os esconderijos? Olha, aqui no meio é onde eles guardam os alimentos; sabias que comem muito arroz? Estão todos a treinar, espalhados pela montanha, aqui', dizia ele, orientando-me, com o dedo num borrão.
Perdida num labirinto colorido beringela, castanho e verde musgo, com abertas de cores mais quentes atraindo um cenário onde corajosos Samurais exibiam uma dinâmica corporal de lutadores exímios, em pleno treino de excelência , a rodopiar sobre si próprios e varrendo em círculo todo o espaço, tomei rumo e viajei nesta aventura plástica, já sem qualquer dúvida ou necessidade de explicação, e convim que, afinal, o abstrato é tangível até mesmo, ou melhor, pela mão duma criança.
Obrigada, Luís. Este vai para a galeria das nossas boas memórias.
Num pedaço de cartão reciclado, este miúdo, de escassos cinco anos, apresentou a sua triunfal ' Chegada à Ilha dos Samurais'. Embasbacada, sem perceber o que era o quê, não consegui formular as perguntas adequadas à obra, não fora ferir o brio de tão jovem 'artista'. Perante tanta hesitação, o menino abre o jogo ' estás a ver os esconderijos? Olha, aqui no meio é onde eles guardam os alimentos; sabias que comem muito arroz? Estão todos a treinar, espalhados pela montanha, aqui', dizia ele, orientando-me, com o dedo num borrão.
Perdida num labirinto colorido beringela, castanho e verde musgo, com abertas de cores mais quentes atraindo um cenário onde corajosos Samurais exibiam uma dinâmica corporal de lutadores exímios, em pleno treino de excelência , a rodopiar sobre si próprios e varrendo em círculo todo o espaço, tomei rumo e viajei nesta aventura plástica, já sem qualquer dúvida ou necessidade de explicação, e convim que, afinal, o abstrato é tangível até mesmo, ou melhor, pela mão duma criança.
Obrigada, Luís. Este vai para a galeria das nossas boas memórias.
terça-feira, 26 de janeiro de 2016
PRENDA
Nos anos oitenta recebi este “tijolo”, que além de pesado era muito prático.
Só pela simples razão que não tinha de carregar a “tira-colo” a bateria .
Quando o recebi só não dormi com ele, porque dormia com quem mo deu, e assim as
atenções eram dispersas.
Já me esquecia: há poucos anos atrás, consegui pô-lo a funcionar, e não se saiu mal
AnneChrist
quinta-feira, 21 de janeiro de 2016
Viagem à Berlenga
Um dia, estando acampados em
Peniche convenci o meu marido a ir à Berlenga mas antes de irmos ele quis ir ao
turismo para saber como era. Chegados lá houve este diálogo entre o meu marido
e os funcionários que eram dois jovens:
- Menina diga-me por favor como é
o barco para a Berlenga? Ainda é a lenha?
- Não sei. Ó João o barco é a
lenha?
-Não, já não é.
-Ah! Bem me parecia!
Entretanto eu tinha fugido para a
porta sem já poder conter o riso.
Fomos à farmácia comprar um medicamento
para o enjoo, pois o meu marido não queria correr riscos e ao cais comprar os
bilhetes para o dia seguinte. Lá havia uma pequena barraca de madeira onde
estava um homem a vender os bilhetes. Então seguiu-se o diálogo:
- Ó senhor! Quero dois camarotes
de primeira.
- Só tenho bilhetes para o enjoo.
- Bom, paciência, então venham lá
dois bilhetes para o enjoo.
No dia seguinte, depois de
tomarmos um comprimido, sim pois o meu marido não quis ser apenas ele a tomá-lo
e não me restou outra solução pois senão não haveria viagem, lá fomos para o
cais.
Entre as pessoas que entraram para
o barco ia uma alemã já com cara de enjoo e eu logo vi que não escapava e
comentei isso com o meu marido.
Lá fomos entre um grupo de jovens
e alguns iam dizendo:
-Gregório…. Gregório… e os outros
já iam um tanto aflitos.
Chegados lá ao sair reparei que a
alemã estava com um ar de enterro, coitada!
Durante a manhã visitamos às grutas, num pequeno barco
com o barqueiro a cantar o fado enquanto entravamos numa gruta que parecia não
ter fim. Já estava muito escuro e não se via nada mas o homem continuava a
remar e a cantar até que o meu marido lhe disse para voltar porque já não se
via nada pois estavamos em plena escuridão.
Depois tomamos um bom banho no
mar, na linda e única praia que lá há.
Fomos almoçar a um pequeno
restaurante, o único lá existente que mais parecia uma tasquinha:
- O que é que há para comer?
(perguntou o meu marido a um rapazinho que veio servir-nos)
- Senhor, há caldeirada de
“pexe”.
-“Atão venha de lá essa
caldeirada”
No final o rapaz veio
perguntar-nos o que queríamos para sobremesa.
- Quero uvas.
-“Na” há.
-“Atão” quero peras.
Também “na” há.
- “Atão” o que é que há?
-Só há pêssegos.
-“Atão”venham daí os pêssegos.
Coitados eram muito pequenos e
verdes e estavam intragáveis.
Depois de um passeio pela ilha,
cerca das 5 horas da tarde voltamos para o barco.
Mais uma vez lá veio a alemã com
um ar que fazia dó, mas não havia outra forma de regressar e a viagem de
regresso foi mais dura que a ida pois com o vento as ondas entravam no barco
por um lado e saíam pelo outro. Não enjoamos até porque o meu marido achou por
bem tomarmos mais uma dose do medicamento.
Chegados ao parque de campismo
sentamo-nos a descansar, e embriagados pelos medicamentos, pois não deveríamos
ter tomado à vinda, adormecemos um encostado ao outro durante horas pois lembro-me que nem jantamos.
Passado mais ou menos um mês
vimos uma notícia num jornal diário sobre um burro que o faroleiro lá tinha. O
burro estava a ficar muito agressivo e ferrava nas pessoas. Então pensaram que
era por não ter companhia e resolveram trazê-lo a Peniche para ele “namorar”
uma burra mas coitado dele que também enjoou e não aconteceu nada. Então a
solução foi levar a burra até ele e assim já não houve complicação.
Athena
19.01.2016
Subscrever:
Mensagens (Atom)