segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

A caixa do pó de arroz



Chamavam-lhe avó Bicas, mas era só avó emprestada. Nunca dera filhos. Não era bonita, tinha a pele escura e seca como casca de carvalho. O corpo de porte médio deformado pela idade, o arrastar dos sapatos achinelados, o cabelo grisalho curto rente à nuca, numa ' mise en plis adiada',  um sorriso gaiato apesar dos seus quase noventa anos, incitavam à minha ternura.

Tinha o governo da casa, da empregada, das compras, dos animas de galinheiro que mandava decapitar de tempos a tempos depois de boas temporadas de milho, farelo e couve galega.

Não tinha qualquer formação, tão somente a sabedoria que os velhos carregam.

Com vestuário despretensioso, de corte duvidoso da costureira da rua da Regeneração, primava pelos motivos florais, abrasileirados, e pela desfaçatez com que usava brincos e colares de pechisbeque em cores garridas, condizentes, que a deslumbravam não obstante a zombaria dos da casa. 

Nos dias de festa, empoava-se num tom rosa pálido que mal cobria a sua tez morena a as faces alilasadas. A rudeza das feições permaneciam inalteráveis por detrás desse banho de pó de arroz que espalhava com uma almofadinha acetinada depois de retirar a tampa de prata da caixa  de vidro pintada. Já tinha sido da minha mãe e da minha avó, dizia  ela, sem emoção mas relembrando a ascendência.

Para mim, jovem observadora, estes preparativos tinham um misto sabor a entrudo e fantasia que me transporta ainda, através desta pequena caixa, a um tempo remoto que, não sendo o meu, com deleite, dele me apropriei.
Prímula Matinal 








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