Chamavam-lhe
avó Bicas, mas era só avó emprestada. Nunca dera filhos. Não era
bonita, tinha a pele escura e seca como casca de carvalho. O corpo de
porte médio deformado pela idade, o arrastar dos sapatos achinelados, o
cabelo grisalho curto rente à nuca, numa ' mise en plis adiada', um
sorriso gaiato apesar dos seus quase noventa anos, incitavam à minha
ternura.
Tinha
o governo da casa, da empregada, das compras, dos animas de galinheiro
que mandava decapitar de tempos a tempos depois de boas temporadas de
milho, farelo e couve galega.
Não tinha qualquer formação, tão somente a sabedoria que os velhos carregam.
Com
vestuário despretensioso, de corte duvidoso da costureira da rua da
Regeneração, primava pelos motivos florais, abrasileirados, e pela
desfaçatez com que usava brincos e colares de pechisbeque em cores
garridas, condizentes, que a deslumbravam não obstante a zombaria dos da
casa.
Nos
dias de festa, empoava-se num tom rosa pálido que mal cobria a sua tez
morena a as faces alilasadas. A rudeza das feições permaneciam
inalteráveis por detrás desse banho de pó de arroz que espalhava com uma
almofadinha acetinada depois de retirar a tampa de prata da caixa de
vidro pintada. Já tinha sido da minha mãe e da minha avó, dizia ela,
sem emoção mas relembrando a ascendência.
Para
mim, jovem observadora, estes preparativos tinham um misto sabor a
entrudo e fantasia que me transporta ainda, através desta pequena caixa,
a um tempo remoto que, não sendo o meu, com deleite, dele me
apropriei.
Prímula Matinal
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